Quando eu era um puto de oito anos, havia na região saloia onde cresci uma fábrica de refrigerantes perto de Caneças onde era produzida graças a um franchising uma bebida que aprendi a gostar por demais: a extinta Carbo Sidral.
Áquela época, as grandes cadeias de distribuição alimentar tipo Sonae ainda não tinham aparecido ou proliferado tanto assim como hoje. Por isso, a boa da Carbo Sidral saía da fábrica em velhos camiões de transporte de grades de garrafas e estas eram descarregadas directamente em cafés e restaurantes da zona da grande Lisboa, pelo menos. E até mesmo à porta do consumidor final! Isto no nosso próprio caso, o dos habitantes aqui da zona da então freguesia de Odivelas que bastava fazer o pedido nesse sentido ao departamento comercial da fábrica. Todas as semanas tinhamos certinha uma grade de 12 garrafas a ser-nos entregue. Como se fosse pela carrinha de um leiteiro de antigamente.
No meu ano sabático de férias pagas pelo exército português na ilha da Madeira experimentei uma vez só na vila piscatória do Caniçal uma bebida que era até então apenas um mito pessoal. Falo da sidra que me disseram ser tradicional do Santo da Serra. Não fiquei mesmo nada cliente naquele exacto momento. Aquilo era mais um vinagre do que uma poção que me recordasse o suco do fruto do pecado original.
Quando debutei a minha carreira profissional na área da engenharia, tive de efectuar frequentes deslocações até ao Minho, principalmente aos concelhos da Póvoa do Lanhoso e de Vieira do Minho. Aí, uma daquelas pequenas impressões locais que me chocava sobremaneira era a quantidade de maçãs que jaziam nos solos, caídas das árvores nos campos daquelas paragens. Sem que ninguém aparentemente quisesse tirar qualquer proveito daquele recurso que a natureza generosamente disponibilizava. Dava vontade de fazer alguma coisa! Não perpetuar um desperdício tão grande como aquele. Mas como? Isso à altura eu ainda não vislumbrava.
Quase a abeirar os meus quarenta anos, descobri essa pequena maravilha terrena que é a Bretanha francesa e, claro, por força das circunstãncias, le cidre doux breton… e foi um coup de foudre. A partir daí, se tivesse de escolher uma só bebida, além da H2O de Lineu e do leitinho Vigor, que fosse a única até ao fim dos meus dias que eu poderia engolir ás refeições essa seria a sidra que os celtas nos deixaram em legado.
Com um curriculum vitae destes, ás tantas eu devo ser um gajo mesmo ideal para relançar a produção nacional de sidra, penso eu!…
Andei a ver umas coisas aqui e acolá na web. Ao menos no Santo da Serra, na Madeira, a sidra parece que não passa de moda… A julgar pelo cartaz lá em cima.
Aqui no continente consta que a sidra já teve uma tradição de consumo no norte, justamente no Minho. Tradição essa que em Ponte de Lima se pretende renovar, com o arranque da produção de sidra tradicional, sob a marca Lagoas. Como se mostra numa foto acima neste post. Há dois anos que esta iniciativa dura. Desconheço ainda que sucesso terá hoje.
Junto do Minho temos a Galiza. Que será a região espanhola com mais toneladas de maçã colhidas. Tantas que as exportam a granel para que chineses e japoneses também façam hoje a sua sidra. Um pouco mais longe, nas Astúrias, existe desde tempos imemoriais a melhor sidra ibérica, dizem.
Mas para beber a melhor de todas para mim, temos de continuar a rumar mais a norte ao longo da costa. Ah, a cidra doce da velha Armorique! Com uma publicidade como a da Kerisac, que se mostra aqui ao lado, nem carecia de ser tão boa… E então o kir breton! Ui... Mas há muito mais mundo no que diz respeito ao rico sumo de maçã fermentado. A saber...
Nas Américas, onde o saber da produção da sidra foi trazida pelos colonos britânicos, alguns tipos novos deste néctar divino terão surgido. Como é o caso da cyser. Que é uma sidra em que se mistura mel, tornando-a assim mais densa e escura e, para além disso, muito doce. Aqui ao lado, a da Eaglemount, de produção artesanal no estado de Washington, bem lá no noroeste americano. Que pomada que isto deve ser, meus deuses!!!... Oxalá haja deste lado do Atlântico também.
No Canadá, perto dali, once já vingava um algo surpreendente
ice wine, nas regiões bem frias junto ao Alaska, fizeram nascer também a
ice cider. Feita a partir de maçãs mirradas pela neve e pelo gelo. Que aqui em Portugal os jovens agricultores diriam logo que eram duma colheita para deitar inteirinha para o lixo. Aqui à direita, uma típica garrafa de design finíssimo, da marca Pinnacle, do Quebec. Valendo o seu peso em ouro, muito provavelmente...
No hemisfério sul, a Argentina tem na sidra uma bebida de largo consumo. Já no Brasil, a coisa parece que pega sobretudo ou só quase no Natal, onde se apelida de champagne dos pobres. Imagem um pouco pejorativa que me arrepia o pelo, por depreciar a minha bebida preferida. Mas talvez a maçã tupiniquim não seja mesmo lá essas coisas… Apesar da esbeltez da embalagem à esquerda ilustrada... Para pobres, hein?...
Já me estou a alongar e ainda não toquei no célebre Calvados da Normandia nem no
apple brandy anglo-saxão. Nem ainda em sidras que não levam sumo de maçã… mas de pera. Ou de frutos vermelhos. Ou sidras misturadas com vinho. Ou a sidra tomada quente - sim, quentinha, que nem um chá - com um indispensável pau de canela a aromatizar, mergulhado na chávena. Mas por hoje fico por aqui.
Ressuscitar a sidra em Portugal é bem uma ideia peregrina! Requeriria toda uma campanha de
marketing bem arrojado. Mas seria para o bem comum, uma vez que esta bebida tem tantas boas potencialidades para a saúde humana… A ver, citando este artigo
aqui, da autoria de Regina Pereira, engenheira agrícola:
"A Sidra tem alguns efeitos benéficos para a saúde, sendo um produto, diurético, eupéptico (facilita a digestão), anti-oxidante, febrífugo (inibe a febre), anticatarral, antidiarreico, digestivo, que previne enfartes e outras doenças cardíacas, protege a arteriosclerose, é anticancerígeno, cicatrizante, entre outros.
Não é por isso de estranhar ouvir dizer que «saímos do paraíso por causa da maçã e com a maçã voltamos ao paraíso».
Por isso, beba Sidra (com moderação)…"
Tenho de estudar agora quais são as melhores variedades de maçã da Tugalândia que se adequarão a ser transformadas em líquido. Nem que seja para apenas me poder relembrar do saudoso sabor da Carbo Sidral de quando eu era um infante muito verde.
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